terça-feira, 25 de outubro de 2011

A Responsabilidade pelo Mundo e a Educação

Devo ter lido já umas dez vezes o capítulo "A crise na educação" da Hannah Arendt.

Se doutorandos têm o direito de cultuar suas divas, eis aqui a minha (claro que posso criticá-la também).

Cada vez que leio, aprendo algo novo. Mas tem um trecho que me impressiona profundamente todas as vezes. É a ligação que entre educadores (professores, inclusive) e a assunção da Responsabilidade pelo Mundo - este que construimos até agora.

Os professores são os adultos que representam, para os mais jovens, aquilo que as gerações anteriores fizeram, de bom e de mau. Somos nós o passado e o presente. Juntamos nosso presente aos dos jovens com quem nos encontramos dia após dia. Esperamos constuir juntos um "futuro que possamos amar" (essa eu tirei da outra "diva", Agnes Heller. Está em "Uma teoria da História").

Escreve Arendt: "Qualquer pessoa que se recuse a assumir a responsabilidade coletiva pelo mundo não deveria ter crianças [uia!!!!!!!!!], e é preciso proibi-la [uiaaaaaaa!!!!!!!] de tomar parte em sua educação." (In: Entre o passado e o futuro. Perspectiva, 2009, p.239).

Ela fala de Responsabilidade Coletiva pelo mundo. Não quer dizer que todo adulto deve bater no peito, fazer cara de arrependido e murmurar "mea culpa /mea culpa / mea maxima culpa". Educadores não podem ser o tipo de pessoa que diz: "não tenho nada a ver com isso". Significa que assumimos o que fizemos, reconhecemo-nos como membros de uma coletividade que criou fábricas de morte, bombas atômicas, poesia e História.

É essa atitude que confere autoridade (ou legitimidade) ao professor. Apesar de outras esferas da sociedade abolirem a autoridade e execrarem a tradição (ou o passado), os educadores não podem abrir mão do papel de responsáveis pelo mundo que foi construído.

A autoridade exercida pelos adultos sobre os jovens não é igual à autoridade que pode ser exercida no mundo público, político, pois é uma autoridade temporária (existe apenas enquanto os jovens são jovens e precisam da proteção e respeito dos adultos). A autoridade política, quando existe, é perene, independe de idade ou qualquer outra situação biológica ou social.

Quando os adultos abrem mão dessa autoridade, é como se condenassem as crianças a entenderem o mundo por si próprias e "lavassem as mãos" pelo que acontecerá depois. Aqui está a ligação mais bonita do pensamento arendtiano - a conexão entre passado, presente e futuro.

A educação NÃO IMPÕE aos jovens sua própria visão de como o mundo deverá ser. Ao contrário, CONSERVA os significados do passado, protegendo-os da exposição prematura ao mundo público e desenvolvendo seus talentos e qualidades para que eles possam, por sua própria conta, criar o NOVO sem destruir tudo o que foi acumulado até então.

"É sobremodo difícil para o educador arcar com esse aspecto da crise moderna, pois é de seu ofício servir como mediador entre o velho e o novo, de tal modo que sua própria profissão lhe exige um respeito extraordinário pelo passado." (ibidem, p.244).

É por isso que o educador não pode atuar se não se sentir RESPONSÁVEL pelo mundo, se não acreditar na necessidade de preservação do mesmo para as futuras gerações - o que Arendt chama, poeticamente, de amor mundi.

"A educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria inevitável não fosse a renovação e a vinda dos novos e dos jovens. A educação é, também, onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não expulsá-las de nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos, e tampouco arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e imprevista para nós, preparando-as em vez disso com antecedência para a tarefa de renovar um mundo comum." (ibidem, p.247).

Que relação isso tem com o pensamento utópico? Arendt diz que nas narrativas utópicas (como a de Morus e o próprio Rousseau) a educação é a ferramenta que construirá homens novos, preparados para viver num mundo diferente totalmente isolado. Essa crença na educação como construtora de uma sociedade previamente idealizada é uma das ILUSÕES mais graves do mundo moderno.  Querer que os mais jovens construam um mundo tal qual os mais velhos o projetam incorre em tirania. É uma ilusão querer criar o novo pela imposição de noções velhas. A ilusão vem do fato de que o mundo "novo" em que as crianças habitarão não é NOVO. Ele já existia antes que nascessem e continuará existindo depois delas.

Portanto, Responsabilidade do professor não é impor aos jovens suas próprias ideias de como o mundo deveria ser. Isso é Tirania, ou, no mínimo, transferência, para a escola, de uma tarefa que é do âmbito público do debate político. Por outro lado, não pode abrir mão de mostrar aos mais novos como o mundo é.

Não é a utopia da Regeneração e Renovação da humanidade a partir de um modelo pronto do "Homem Novo" (como queriam os Iluministas). Para o professor, Responsabilidade pelo Mundo é reconhecer seu lugar no Tempo e seu papel (beirando o quixotesco): representar a autoridade e a tradição, por amor ao mundo, quando se insiste em lançar os jovens, despreparados, para o enfrentamento prematuro da vida pública. Em outra publicação (Responsabilidade e Julgamento), Arendt relaciona o amor mundi a um tipo específico de Responsabilidade Política. Cenas do próximo capítulo. Ou melhor, da Introdução da tese!!! :)

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Sobre a falta

Há diferentes formas de sentir falta. Sinto falta dela, é verdade. Mas diferente. Imagino se ela iria gostar de ver a pessoa que sou hoje.

Essa figura que só sou porque ela se foi. A adolescente tardia e egoísta de repente perdeu a memória e teve de se recriar. Nada a ver com uma fênix. Muito longe disso.

Só diferente. Ainda sinto falta dela.

Eu sonho, com frequência, que tenho de passar por obstáculos. Sueño con serpientes (gracias, Mercedes) e não sei derrotá-las.

Ela vem, mostra-me como matá-las. Ensina-me como passar roupa e me ajuda a fechar incontáveis janelas daquela casa antes que chegue a tempestade.

Deve ser por isso que a memória me falta com tanta frequência. Outras pessoas vieram e ocuparam novos espaços,  mas ali está a falta, o eco, a ausência, o nada.

Não é tristeza. Lembrei até de um poema que eu costumava saber de cor - mas a memória me falta, nos últimos anos:

AUSÊNCIA

  Vinícius de Moraes

Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces.
Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto.
No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida
E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz.
Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado.
Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados
Para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada.
Que ficou sobre a minha carne como nódoa do passado.
Eu deixarei... tu irás e encostarás a tua face em outra face.
Teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugada.
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu, porque eu fui o grande íntimo da noite.
Porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa.
Porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço.
E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado.
Eu ficarei só como os veleiros nos pontos silenciosos.
Mas eu te possuirei como ninguém porque poderei partir.
E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas.
Serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada.